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Fogos em Portugal: está na hora de lermos as mensagens da Natureza

Atualizado: 20 de set.

O incêndio que começou no Piódão, numa encosta da Serra do Açor, alastrou-se rapidamente à Serra da Gardunha e à Serra da Estrela (na foto), a dezenas de quilómetros de distância
O incêndio que começou no Piódão, numa encosta da Serra do Açor, alastrou-se rapidamente à Serra da Gardunha e à Serra da Estrela (na foto), a dezenas de quilómetros de distância

A época dos incêndios ainda não acabou, mas chegou a altura de fazermos um primeiro balanço, olhando para os sinais que a Natureza já nos deu e para as melhores soluções baseadas nela para reduzir drasticamente os fogos

 

VIRGÍLIO AZEVEDO

 


As temperaturas máximas registadas no Continente ainda são bastante elevadas, apesar de as previsões do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) apontarem para uma descida a partir de 21 de setembro. Quando observamos o mapa do Perigo de Incêndio Rural (PIR) do IPMA para os próximos dias, o risco “Máximo” ou “Muito Elevado” continua a existir em muitos dos 308 concelhos do país, especialmente na Beira Interior e em Trás-os-Montes. No fundo, já não há uma época de incêndios tão delimitada como no passado, o que significa que o fogo pode regressar em setembro e outubro.


Mas a Natureza já nos deixou pelo menos 3 mensagens:  


1. Uma boa parte do que ardeu não é verdadeiramente floresta 

Já ardeu mais de 3% do país em 2025. Como 36% do território é área florestal (um pouco mais de 1/3), significa que já ardeu quase 10% dessa área. É uma situação que não se compara com o que se passou em Espanha, Grécia, Itália, Albânia ou sul de França, onde a percentagem de área ardida foi muito menor. Curiosamente, só 6% da área ardida em Portugal corresponde a eucaliptais, ao contrário do que aconteceu em anos anteriores.

Mas como escreveu o biólogo e botânico Jorge Paiva a 20 de agosto, num artigo de opinião no jornal “Público”, “praticamente já não temos floresta”, porque “uma floresta é um ecossistema natural complexo, com várias espécies de árvores, de arbustos e de muitas outras espécies de plantas e de outros seres vivos”.

Ora os pinhais e os eucaliptais que temos em Portugal “não são florestas, pois apenas possuem uma espécie de árvore e não são ecossistemas naturais. O mesmo acontece com os soutos, os azinhais e os montados de sobro”, isto é, com os bosques de castanheiros, de azinheiras e de sobreiros, que são todos monoculturas feitas pelos humanos. A situação é mais extrema quando passeamos por um grande eucaliptal: não encontramos lagartixas, cobras, coelhos, raposas, pássaros, aves de rapina, javalis, gamos, enfim, estamos perante um bosque sem vida animal e sem biodiversidade.

Por outro lado, como sublinha o professor jubilado da Universidade de Coimbra, “os pinhais e os eucaliptais, além de densos e ricos em produtos voláteis inflamáveis (resinas e óleos essenciais), ocupam áreas contínuas de grandes dimensões (muitos quilómetros), constituindo pistas de alta velocidade de progressão do fogo”. E os aceiros “são uma farsa, pois apenas servem para os tratores recolherem e transportarem os toros”. O aceiro é uma faixa de terreno sem vegetação, criada com o objetivo de impedir que o fogo alastre de uma área para outra, protegendo plantações, matas e propriedades.

 

2. O fogo pertence, dentro de certos limites, à dinâmica dos ecossistemas de clima mediterrânico

“Não faz sentido acabar com o fogo”, sublinha o site florestas.pt, coordenado pelo RAIZ – Instituto de Investigação da Floresta e do Papel. “O fogo esteve e estará sempre presente nos ecossistemas com clima mediterrânico temperado (com período seco no verão), tal como o que existe em Portugal Continental”.

O fogo teve um efeito importante na evolução da flora e da fauna de muitos ecossistemas. E na região mediterrânica, a vegetação existente é também resultado da ação repetida do fogo “e, ao contrário das opiniões que erradamente se tornaram comuns, o fogo é parte integrante e necessária à sua manutenção". Sendo estruturante dos ecossistemas, “o importante não é acabar com o fogo, mas garantir que este tenha baixa intensidade, resultando em impactes menores”. Ou seja: é preciso prevenir os incêndios de alta intensidade e gerir os incêndios de baixa intensidade.

Os incêndios de baixa intensidade são necessários em certos ecossistemas. São estes que permitem reduzir a vegetação e prevenir maiores impactes. “A supressão de todos os incêndios leva ao aumento da carga de vegetação combustível e, dessa forma, ao aumento da probabilidade de ocorrência de incêndios com elevada intensidade e efeitos devastadores, acima da capacidade de extinção, independentemente dos meios de combate disponíveis”, avisa o florestas.pt.

Mas para que tudo isto resulte é preciso restaurar o mosaico típico da paisagem mediterrânica, isto é, a diversidade de usos do solo e habitats que forma um padrão interligado de áreas agrícolas, florestais, pastos e habitats naturais.  Este mosaico de elevada biodiversidade torna mais fácil a prevenção, a gestão e o combate dos incêndios florestais, que são muito mais limitados em termos de área e duração. E ainda existe em algumas regiões do país, como a margem esquerda do Rio Guadiana. Como diz a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), “os incêndios voltarão sempre, mas o que ainda está nas mãos de Portugal é evitar que se transformem em catástrofes”.  

 

3. É preciso ter consciência da mudança do comportamento dos incêndios com as alterações climáticas

Com as alterações climáticas, os incêndios são cada vez mais indomáveis nas monoculturas de eucaliptos e de pinheiros. Os fogos florestais mais intensos podem criar o seu próprio vento, levando a chamas mais longas, surtos explosivos e ignição de dezenas de incêndios nas proximidades a partir de brasas voadoras.

Foi o que aconteceu com o incêndio que começou no Piódão, no concelho de Arganil (Centro do país), e se alastrou progressivamente aos concelhos de Oliveira do Hospital, Seia, Fundão e Covilhã, “viajando” dezenas de quilómetros com grande rapidez. O fogo atingiu uma área de 64 mil hectares (640 km2) e um perímetro de 300 km (!!!), segundo o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF). É a maior área de sempre desde que há registos oficiais.

Uma análise recente do grupo de cientistas World Weather Attribution (WWA) aos incêndios de agosto na Península Ibérica concluiu que as condições meteorológicas propícias aos fogos foram 40 vezes mais prováveis por causa das alterações climáticas.


As raízes das giestas, já depois de o fogo parecer extinto, continuam por vezes a arder lentamente debaixo do solo durante uma semana, desde que tenham oxigénio
As raízes das giestas, já depois de o fogo parecer extinto, continuam por vezes a arder lentamente debaixo do solo durante uma semana, desde que tenham oxigénio

 

AS MELHORES SOLUÇÕES JÁ ESTÃO NO TERRENO


É impossível ter aviões, helicópteros, carros de bombeiros, máquinas de rasto e sapadores em todo o lado. O combate aos incêndios não é o mais importante, as prioridades devem ir para a prevenção, para o reordenamento do território e para o restauro dos ecossistemas, isto é, para a regeneração da Natureza.

Há quem defenda teorias da conspiração e acredite que os incêndios são um negócio, devido aos casos de fogo posto. De facto, há neste momento 42 pessoas a cumprir pena por incêndio florestal e outras 40 em prisão preventiva. E ainda 24 pessoas que foram consideradas inimputáveis e estão internadas em instituições psiquiátricas.

O fogo seria, assim, um negócio para as empresas que alugam aviões e helicópteros; que vendem, alugam e reparam viaturas de combate a incêndios; que fornecem mangueiras, bombas de água e material de proteção para os bombeiros; que vendem madeira queimada das áreas ardidas; que fazem a limpeza das matas; etc. etc.

Mas a realidade é que a morte também é um negócio para as funerárias, fabricantes de caixões e de artigos religiosos. Os acidentes rodoviários são igualmente um negócio para as marcas de automóveis e as oficinas de reparação. E os assaltos a moradias, apartamentos ou lojas são, por sua vez, um negócio para as empresas de alarmes, sistemas de segurança e câmaras de videovigilância. Enfim, a lista nunca mais acaba, o que significa, simplesmente, que as teorias da conspiração não servem para explicar a origem da esmagadora maioria dos incêndios florestais em Portugal.  

As florestas absorvem milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2), atenuam o calor extremo e a seca, previnem a erosão dos solos, protegem as bacias hidrográficas e evitam a desertificação da paisagem. Concentremo-nos, por isso, nas soluções mais eficazes para reduzir drasticamente os fogos florestais, em especial aquelas que são baseadas na Natureza.


Eis algumas delas:

 

1. “Cabras sapadoras”

As chamadas “cabras sapadoras” são rebanhos mantidos com o propósito de prevenir incêndios florestais a partir de uma cuidada gestão do pastoreio, com o consequente controlo dos matos na floresta e a gestão da vegetação (ou combustível, como dizem os especialistas), da biodiversidade e da paisagem. As cabras comem tudo e limpam bem os matos. Há diversas empresas a oferecer este tipo de serviços de pastoreio dirigido em Portugal e em Espanha.


2. Programa Condomínios de Aldeia


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É um programa público que tem como objetivo dar apoio e resiliência às aldeias localizadas em territórios vulneráveis de floresta. Apoia concretamente um conjunto de ações destinadas a assegurar a alteração do uso e ocupação do solo e a gestão de combustíveis em redor dos aglomerados populacionais, ajudando aldeias a criar faixas de contenção e a plantar espécies resistentes ao fogo como o sobreiro, a azinheira, o medronheiro, o vidoeiro (também conhecido por bétula) e o carvalho, especialmente o carvalho-cerquinho, que se destacam por características como casca espessa, alta humidade e capacidade de regeneração.

Os Condomínios de Aldeia incentivam os proprietários a assumir a manutenção dos terrenos garantindo a sua limpeza e promovendo uma ocupação do solo geradora de rendimentos. Têm uma forte componente participativa e de envolvimento da comunidade local, em prol do desenvolvimento económico sustentável destes aglomerados populacionais. Houve quase 600 candidaturas a este programa aprovadas em 2024.


3. Abordagem holística da realidade

Os fogos de 2017, incluindo o de Pedrógão Grande, obrigaram Portugal a repensar a sua abordagem e desde então a aposta tem sido numa estratégia de governo integrada, holística, unindo floresta, agricultura, urbanismo, entidades reguladoras e proteção civil num único plano. A criação da Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais (AGIF) permitiu que o país passasse a ter uma entidade dedicada a concretizar esta visão. O orçamento para os incêndios duplicou (atinge 638 milhões de euros), com mais de metade direcionado para a prevenção. Mais terrenos têm sido limpos, o cumprimento das regras melhorou, as ignições caíram 45% e todas as regiões têm agora planos florestais. Claro que, mesmo assim, persistem fragilidades. Um exemplo: as terras produtivas são mais tributadas em impostos do que as terras abandonadas.


4. Cadastro das propriedades florestais

Ainda não se sabe quem são os donos da maior parte dos terrenos rústicos em Portugal. Só 36% das propriedades estão registadas no Balcão Único do Prédio (BUPi), o sistema de cadastro simplificado que arrancou depois dos grandes incêndios de 2017 em Pedrógão Grande, Oliveira do Hospital e outros concelhos. É um problema que atinge principalmente as regiões do país a norte do Rio Tejo, onde a propriedade florestal está muito fragmentada (muito Yin): os tais 36% correspondem a 2,8 milhões de propriedades!!!

Esta situação é agravada pela existência de muitas heranças indivisas, isto é, terrenos deixados por uma pessoa falecida que ainda não foram divididos entre os seus herdeiros, mantendo-se como um conjunto único e pertencente a todos eles. Em muitos casos os herdeiros desconhecem mesmo que estes terrenos existem ou simplesmente não sabem onde estão localizados. E tudo isto constitui uma barreira ao ordenamento do território e à aplicação de políticas para prevenir os incêndios.

Mas saber quem são os donos destes terrenos é essencial para envolvê-los na limpeza e preservação da floresta e para promover a gestão florestal, como sublinha um estudo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra apresentado no final de agosto. Os investigadores não têm dúvidas de que “a inclusão do BUPi na gestão das áreas florestais reduz a intensidade e velocidade dos incêndios e poupa dinheiro ao erário público”. O que a lei prevê é que a partir de 2026 o Estado tome posse das terras que não tenham proprietário registado no BUPi.


5. ZIF - Zonas de Intervenção Florestal


As ZIF permitem aos pequenos proprietários e produtores florestais gerir o seu património de forma conjunta e com uma gestão técnica correta para a defesa da floresta contra os incêndios
As ZIF permitem aos pequenos proprietários e produtores florestais gerir o seu património de forma conjunta e com uma gestão técnica correta para a defesa da floresta contra os incêndios

As Zonas de Intervenção Florestal (ZIF) são associações que se constituem por iniciativa dos proprietários ou produtores florestais, que nomeiam uma entidade gestora. Esta entidade elabora os planos de gestão e defesa da floresta contra incêndios. Há mais de 300 ZIF de Norte a Sul do país.

Uma ZIF corresponde a um território contínuo e delimitado com mais de 500 hectares, que permite aos pequenos proprietários e produtores florestais gerir ativamente o seu património, de forma conjunta e com uma gestão técnica correta. As ZIF procuram ultrapassar os problemas das pequenas propriedades sem gestão florestal e que não são viáveis em termos económicos (Yin). Com efeito, devido à reduzida dimensão, a sua limpeza e manutenção exige recursos financeiros superiores ao rendimento que podem dar isoladamente.

Os objetivos das ZIF (Yang) são promover a gestão sustentável dos espaços florestais e naturais que as integram; coordenar, de forma planeada, a sua proteção; reduzir as condições de ignição e de propagação de incêndios; coordenar a recuperação dos espaços florestais e naturais quando afetados por incêndios; e dar coerência territorial e eficácia à ação da administração central e local e dos demais agentes com intervenção nos espaços florestais.

 

 

 

 
 
 

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