top of page

Como o fabuloso livro 'O Princípio de Tudo' conta uma nova História da Humanidade (1)

Atualizado: 13 de mai.

Durante séculos ouvimos uma História bem conhecida sobre as origens das sociedades humanas e das desigualdades sociais: os seres humanos viveram a maior parte da sua existência na Terra em pequenos clãs de caçadores-recolectores. Depois, veio a agricultura, e com ela surgiu a propriedade privada. Por fim, criaram-se as cidades, e com elas nasceram as civilizações e as guerras, a burocracia, o patriarcado e a escravatura. Mas esta narrativa tem um problema: é falsa. Assente em investigações inovadoras, o livro "O Princípio de Tudo" (728 págs.), editado pela Bertrand em 2022, da autoria de David Graeber, já falecido, que foi professor de Antropologia na London School of Economics, e de David Wengrow, professor de Arqueologia Comparada na University College London, tornou-se um bestseller internacional e traz-nos uma perspetiva radicalmente diferente acerca da História da Humanidade, questionando os nossos pressupostos fundamentais sobre a evolução social. Vamos, por isso, destacar neste Blog, ao longo de várias semanas, as partes mais importantes deste livro fabuloso.  

UMA HISTÓRIA MAIS ESPERANÇOSA Este livro é uma tentativa de começar a contar uma outra História mais esperançosa e mais interessante, reunindo provas que se acumularam nos campos da arqueologia, da antropologia e das disciplinas com elas relacionadas, que apontam na direção de um relato completamente novo do modo como as sociedades humanas se desenvolveram durante os últimos 30 mil anos.

É agora evidente que as sociedades humanas antes do advento da agricultura não estavam confinadas a pequenos bandos igualitários. Pelo contrário, o mundo dos caçadores-recolectores era caraterizado por experiências sociais audazes, assemelhando-se muito mais a um desfile de Carnaval de formas políticas do que às monótonas abstrações da Teoria da Evolução.

A agricultura, por seu turno, não significou o início da propriedade privada, nem marcou um passo irreversível na direção da desigualdade. Em bom rigor, muitas das primeiras comunidades agrícolas eram relativamente livres de cargos e hierarquias. Um número surpreendente das primeiras cidades do Mundo estava organizado segundo linhas robustamente igualitárias, sem necessidade de líderes autoritários, políticos-guerreiros ambiciosos ou sequer administradores com tendências opressoras.

As investigações que existem hoje podem criar uma História do Mundo completamente diferente – mas, até ao momento, continuam escondidas de todos, com a exceção de uns quantos especialistas privilegiados. A visão dominante da História não tem quase nada a ver com os factos.

Também é necessária uma mudança conceptual, que significa reconstituir alguns dos passos iniciais que conduziram à nossa moderna evolução social, pondo em causa a ideia de que as sociedades humanas podiam ser ordenadas de acordo com etapas de desenvolvimento, cada qual com as suas próprias tecnologias e formas de organização caraterísticas (caçadores-recolectores, agricultores, sociedade urbano-industrial, etc.).

Tais noções têm as suas raízes numa reação conservadora contra as críticas à civilização europeia nas primeiras décadas do século XVIII. As origens dessas críticas não são dos filósofos do Iluminismo, mas dos comentadores e observadores indígenas americanos da sociedade europeia.

Um primeiro passo para um quadro mais exato e otimista da História Mundial poderá ser o abandono do Jardim do Éden da Bíblia de uma vez por todas e simplesmente abolir a ideia religiosa de que, durante centenas de milhares de anos, todas as pessoas na Terra partilharam o mesmo modelo de organização social idílico.

Em primeiro lugar, é bizarro imaginar que durante dez mil anos, ou mesmo 20 mil anos, ninguém experimentou modelos de organização social alternativos. Em segundo lugar, não é a própria capacidade de experimentar com diferentes modelos de organização social uma parte por excelência do que nos torna humanos? Não somos nós seres com capacidade de autocriação, até de liberdade?

A derradeira questão da História Humana não é o nosso acesso igualitário a recursos materiais (terra, calorias, meios de produção), muito embora estes elementos sejam importantes, mas antes a nossa capacidade igualitária de contribuir para decisões sobre como viver em conjunto. Se, como muitos sugerem, o futuro da nossa espécie assenta agora na nossa capacidade de criar algo diferente - um sistema em que, por exemplo, a riqueza não possa ser transformada em poder ou não se transmita a algumas pessoas que as suas necessidades não são importantes e que as suas vidas não têm valor intrínseco -, então o que importa, em última análise, é se conseguimos redescobrir as liberdades que nos tornaram humanos logo à partida.

Nós somos projetos de autocriação coletiva. E se tratássemos as pessoas, desde o início, como criaturas imaginativas, inteligentes e divertidas que merecem ser entendidas como tal? E se em vez de contarmos uma História sobre como a nossa espécie caiu de um qualquer estado de igualdade idílico, nos questionássemos sobre como ficámos presos numas correntes conceptuais tão apertadas que já não conseguimos imaginar a possibilidade de nos reinventarmos?

Não há razão científica alguma para acreditar que os grupos sociais de pequena escala ao longo da História revelem uma especial propensão para serem igualitários – ou, de modo inverso, que os grupos sociais de grande escala devem ter necessariamente reis, presidentes ou sequer burocracias. Declarações como estas de conhecidos historiadores e investigadores contêm apenas muitos preconceitos disfarçados de factos, ou até de leis da História.


Sobre a procura da felicidade Terá mesmo a chamada civilização ocidental tornado a vida melhor para todos? Talvez a única forma fiável alguma vez descoberta de determinar se o modo de vida de alguém é efetivamente mais satisfatório, recompensador, feliz ou preferível a qualquer outro seja a que permite que as pessoas experimentem por inteiro vários modos de vida, dando-lhes depois a possibilidade de escolha e observando a que elas tomam.

Por exemplo, a história colonial e da América do Norte e do Sul, a partir dos séculos XVI/XVII, está repleta de relatos de colonos, capturados ou adotados por sociedades indígenas, a quem foi dado a escolher onde viver e quase invariavelmente escolheram ficar nestas sociedades. Esta constatação aplica-se inclusivamente a crianças raptadas. Reunidas de novo com os seus pais biológicos, a maioria fugia para juntos dos seus familiares adotivos em busca de proteção.

Em contrapartida, os ameríndios incorporados na sociedade europeia por via da adoção ou do casamento, incluindo aqueles que desfrutavam de riqueza e educação consideráveis, faziam quase sempre o contrário: ou escapavam à primeira oportunidade, ou – tendo tentado ao máximo a integração, mas sem sucesso – regressavam mais tarde à sociedade indígena para aí viverem o resto dos seus dias.

Muitos dos que se viram enredados em tais desafios da civilização, conseguiram apresentar razões claras para as suas decisões de permanecer com os seus antigos captores. Alguns enfatizaram aas virtudes da liberdade que encontraram nas sociedades nativas americanas, incluindo liberdade a nível sexual, mas também liberdade face à expectativa de muita labuta em busca de terra e riqueza.

Outros salientaram a relutância dessas sociedades indígenas em deixar alguém cair numa condição de pobreza, fome ou desamparo. Não era tanto que temessem a pobreza para si mesmos, mas antes que consideravam a vida infinitamente mais agradável numa sociedade onde nenhum dos outros se encontrava numa posição de miséria abjeta.

Outros ainda referiram a facilidade com que os forasteiros, sendo acolhidos por famílias indígenas, poderiam alcançar a aceitação e posições de relevo nas suas comunidades adotivas, tornando-se membros das famílias dos chefes, ou até eles próprios chefes. Os propagandistas ocidentais falam incessantemente sobre a igualdade de oportunidades; mas estas parecem ter sido sociedades onde ela realmente existia.

As razões de longe mais comuns, porém, estavam relacionadas com a intensidade dos laços sociais que esses forasteiros experimentavam nas comunidades nativas americanas: qualidades de cuidado mútuo, amor e sobretudo felicidade que não conseguiam replicar quando voltavam a cenários europeus.


A narrativa convencional está errada e é desnecessariamente desinteressante Ficamos com a impressão de que a vida indígena era muito mais interessante do que a vida numa vila ou cidade ocidental, sobretudo na medida em que a última envolvia longas horas de atividade monótona, repetitiva e conceptualmente vazia. O facto de nos ser difícil imaginar como uma tal vida alternativa poderia ser continuamente atrativa e interessante é talvez mais um reflexo dos limites da nossa imaginação do que da própria vida.

Quando os historiadores e investigadores se limitam a tentar adivinhar as possíveis ações e comportamentos dos seres humanos de outras épocas e lugares, fazem quase sempre suposições muito menos interessantes, muito menos peculiares – em suma, muito menos humanas – do que aquilo que provavelmente se passou.

Um exemplo típico: os investigadores que tentam provar que as formas contemporâneas de trocas comerciais concorrenciais estão enraizadas na natureza humana têm salientado a existência no passado do que chamam “comércio primitivo”. Mas a verdade é que a antropologia fornece infindáveis ilustrações de como os objetos valiosos viajavam através de longas distâncias na ausência de algo que se assemelhasse remotamente a uma economia de mercado.

Nas ilhas Massim, ao largo da Papua-Nova Guiné, no Oceano Pacífico, os homens levavam a cabo ousadas expedições através de mares perigosos em canoas polinésias, com o simples objetivo de trocarem preciosos colares e braceletes feitas de conchas por outros artigos idênticos que eram relíquias de família, apenas para ficarem com eles por pouco tempo e depois os passarem de novo a uma diferente expedição de outra ilha. Os tesouros de família faziam o circuito das ilhas incessantemente, cruzando centenas de quilómetros de oceano, com as braceletes de conchas e os colares em direções contrárias.

Para alguém de fora, não parece fazer sentido. Mas para os homens das ilhas Massim, era a derradeira aventura e nada poderia ser mais importante do que espalhar o seu próprio nome, desta maneira, por lugares nunca visitados. Seria isto comércio? Há uma literatura etnográfica substancial sobre como tais trocas de longa distância funcionavam em sociedades sem mercados. Também ocorriam trocas de géneros, mas estas redes regionais desenvolveram-se sobretudo com o objetivo de criarem relações de amizade mútua ou de terem uma desculpa para se visitarem uns aos outros de tempos a tempos.

Na América do Norte, nas esferas de interação de longa distância no passado dos seres humanos, havia também muitas outras possibilidades que de modo nenhum se assemelhavam a comércio. Exemplos:

1. Sonhos ou busca de visões. Entre os índios que falavam línguas iroquesas nos séculos XVI e XVII, era considerado muito importante concretizar literalmente os sonhos que se tinham. Os índios estavam dispostos a viajar durante dias para trazer de volta algum objeto, troféu, cristal ou até animal que tinham sonhado adquirir. Nas Grandes Planícies, as saídas para viajar longas distâncias na procura de objetos raros ou exóticos poderiam constituir parte das buscas de visões.

2. Curandeiros e animadores itinerantes. Em grande parte da América do Norte, os curandeiros também eram animadores e, com frequência, atraíam séquitos significativos. E aqueles que sentiam que as suas vidas tinham sido salvas pelo curandeiro costumavam oferecer todas as suas posses materiais para serem divididas entre todos. Por esta via, os bens preciosos podiam facilmente viajar através de distâncias muito longas.

3.Jogos de mulheres. Em muitas sociedades indígenas da América do Norte, as mulheres eram jogadoras inveteradas. As mulheres das povoações vizinhas encontravam-se com frequência para jogar aos dados ou a um jogo com uma tigela e um caroço de ameixa, tendo por hábito apostar as suas contas de conchas ou outros objetos de adorno pessoal. Muitas conchas e outros objetos exóticos descobertos em locais muito distantes foram aí parar depois de terem sido incessantemente apostados, e perdidos, em jogos deste tipo entre aldeias durante longos períodos de tempo.

Em conclusão, quando os historiadores, arqueólogos ou antropólogos se limitam a tentar adivinhar as possíveis ações e comportamentos dos seres humanos de outras épocas e lugares, fazem quase sempre suposições muito menos interessantes, muito menos peculiares – em suma, muito menos humanas – do que aquilo que provavelmente se passou.   


(CONTINUA)

Posts recentes

Ver tudo

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating

© 2024 por Nuno Cesário

bottom of page